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Filme mostra reflexões de Antonio Candido no fim da vida

Filme mostra reflexões de Antonio Candido no fim da vida

[RESUMO] “Antonio Candido, Anotações Finais”, documentário de Eduardo Escorel que chega aos cinemas, compõe um retrato do crítico literário a partir de anotações deixadas por ele em seus últimos anos de vida, nas quais trata da infância e juventude, de literatura, da vida familiar, da derrocada do governo Dilma Rousseff (PT), de chagas nacionais como a escravidão e da proximidade da morte.

Em meio à selvageria que se tornou a corrida pela Prefeitura de São Paulo, o documentário “Antonio Candido, Anotações Finais” é um contraponto muito bem-vindo.

Desde os 15 anos, o professor, crítico literário e sociólogo nascido no Rio de Janeiro em 1918 tinha como hábito escrever comentários em cadernos, dos quais restaram 74 volumes. Escrevia sobre a família, os amigos, a infância em Poços de Caldas (MG), a literatura, os acontecimentos da política e da sociedade, entre outros assuntos.

O filme dirigido por Eduardo Escorel, que acaba de chegar às salas de cinema, reúne anotações dos dois últimos cadernos deixados por Antonio Candido, que cobrem o período de 2015 a 2017, ano em que morreu.

Leitor atento da imprensa, o autor de obras fundamentais como “Formação da Literatura Brasileira” (1959) e “Os Parceiros do Rio Bonito” (1964) não estava alheio à sordidez política na fase final da sua vida. Em um desses registros derradeiros, falou sobre o “diabólico Eduardo Cunha”, então presidente da Câmara dos Deputados –”parece que caímos num buraco sem fundo”.

Mas sua indignação exposta em letra cursiva naquelas páginas estava sempre revestida de elegância, uma reação que colocava o autor e seu objeto de análise em degraus bem distantes de civilidade.

Casado com a escritora e designer Ana Luísa, a mais velha das três filhas de Gilda de Mello e Souza e Antonio Candido, Escorel teve a ideia inicial de fazer um filme semanas depois da morte do seu sogro, em 12 de maio de 2017, aos 98 anos. Naquele momento, Laura Escorel, filha do cineasta e neta do crítico, começava a organizar o acervo com mais de 8.000 fotos dos avós, além das obras de uma vasta biblioteca.

Era então só um impulso do diretor, sem maiores elaborações. Tudo mudou quando Eduardo Escorel leu “O Pranto dos Livros”, manuscrito datado de janeiro de 1997 e extraído de um dos cadernos.

Nas primeiras linhas do texto, publicado pela revista piauí em 2018, Antonio Candido anotou: “Morto, fechado no caixão, espero a vez de ser cremado. O mundo não existe mais para mim, mas continua sem mim. O tempo não se altera por causa da minha morte, as pessoas continuam a trabalhar e a passear, os amigos misturam alguma tristeza com as preocupações da hora e se lembram de mim apenas por intervalos”.

Era a deixa que faltava —o homem escolhido como tema do documentário indicava ao cineasta o caminho a ser tomado. “Esse texto teve um impacto muito forte sobre mim porque Antonio Candido imagina o narrador morto no caixão, esperando para ser cremado. A origem do filme está aí”, afirma Escorel, que tem mais de 50 anos de carreira no cinema, entre trabalhos como diretor, montador, roteirista e produtor.

A solução narrativa, que leva o próprio crítico a revelar seus escritos, ou seja, um narrador que já morreu, surgiu inicialmente da leitura de “O Pranto dos Livros” e depois, como é inevitável, de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis, conta o cineasta de 79 anos.

Ao descrever desse modo o artifício usado por Escorel, “Antonio Candido, Anotações Finais” talvez soe como um documentário na fronteira com a ficção. Não é assim. Na narração envolvente a cargo do ator Matheus Nachtergaele, são fictícias apenas uma introdução e uma observação final, ambas breves.

Bem no começo, ouvimos: “Na madrugada de 12 de maio, oito meses antes desta tarde de chuva em São Paulo, eu morri. Ao morrer, deixei meus cadernos de anotações no armário do corredor interno do apartamento onde morava há 21 anos”.

Prevalecem ao longo dos 87 minutos de filme as reflexões, as memórias e os lamentos registrados nesses dois últimos cadernos.

Também contribuiu para a feitura do documentário a relação de parentesco. “Se eu não fosse genro de Antonio Candido, talvez o filme não pudesse ter sido feito porque há uma relação de confiança na qual se baseia a autorização [concedida pelas três filhas do professor] para ler os cadernos. Fui a primeira pessoa a ler esses dois últimos”, conta.

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A literatura, objeto da maior parte da produção bibliográfica e da vida docente de Antonio Candido, aparece no filme com menções a Baudelaire, Verlaine, Machado de Assis, Guimarães Rosa e alguns outros poucos.

O crítico trata os séculos de escravidão como uma mácula que o Brasil jamais enfrentou como deveria. Em uma das anotações, ele adapta um trecho de “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, que fala do “martírio secular da Terra” para se referir à seca. “No martírio secular da África, no qual estamos todos historicamente envolvidos”, escreveu.

Mais adiante, volta a abordar esse assunto, que o perturba. “O alvo de luta social é, antes de mais nada, o negro. A solução obnubilada foi, depois da abolição, descartá-lo em vez de incorporá-lo.”

Distante da militância partidária, Antonio Candido demonstra inquietude diante dos rumos tomados pelo PT, sigla da qual foi um dos fundadores, em 1980. Afirma, entretanto, que Luiz Inácio Lula da Silva já cumpriu sua “missão histórica”.

A vida política do país, a herança da escravidão e a literatura não estão, porém, entre os temas dominantes do documentário.

Um mote recorrente é a saudade de Gilda, com quem o crítico se casou em 1943. Eles viveram juntos até a morte da ensaísta e professora da USP, em 2005. “Ter casado com ela foi, com certeza, o fato mais importante de toda a minha vida. Tudo o mais é secundário, por essencial que possa ter sido”, escreveu em um dos registros lembrados pelo filme.

Outro assunto que percorre todo o documentário é a iminência da morte. Em um manuscrito de 2016, quando está prestes a completar 98 anos, ele se vê como dois: um com o corpo parado, que se sente bem, e outro com o corpo em movimento, cada vez mais frágil. “Não sou mais eu, mas eu acrescido de um intruso que não corresponde a ele. Um é íntegro se estou parado. Outro se desintegra e partilha o mesmo corpo com o primeiro, embora sejam tão diferentes. A solução chegará com a morte, que os reunirá por meio da anulação de ambos.”

“Antonio Candido, Anotações Finais” é um filme em que há mais densidade nas palavras do que nas imagens, o que não implica que essas últimas sejam banais. Além de retratos antigos do crítico literário –ao lado de seus pais e irmãos, junto a Gilda e as filhas, e com os amigos–, sucedem-se registros do apartamento nos Jardins, em São Paulo, e detalhes do entorno: as ruas, as calçadas, as placas de sinalização, a banca de jornal.

Nessas imagens, Escorel contrapõe o fulgor dos tempos de juventude nos passeios em Poços de Caldas e da idade adulta em sala de aula aos últimos meses de vida, em que a lucidez intelectual convive com o declínio físico.

Ao observar sua filmografia em conjunto, o diretor identifica uma proximidade dessa nova produção com outros dois documentários, “Deixa que Eu Falo”, filme de 2007 sobre o cineasta Leon Hirszman, e “1968, um Ano na Vida”, lançamento de 2023 que se baseia no diário de sua irmã Silvia.

São documentários que representam, no dizer do cineasta, uma variação –não uma ruptura– a partir da decisão de evitar as entrevistas. “Não quero dizer que nunca mais vou fazer um filme com entrevistas, mas acho que me cansei um pouco delas. Esses três filmes marcam uma mudança de vertente.”

Dos anos 1960 à década de 1980, Escorel dirigiu filmes de ficção, como “Lição de Amor” (1975), mas se dedicou, sobretudo, ao trabalho como montador em produções hoje tidas como clássicas, como “Terra em Transe” (1967), “Macunaíma” (1969), e “Cabra Marcado para Morrer” (1984).

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A partir de 1990, ele passou a alternar com mais frequência a atividade de editor com a direção de documentários, especialmente filmes sobre a história política do país, casos de “1930 – Tempo de Revolução” (1990) e “1937-1945: Imagens do Estado Novo” (2018).

Seu próximo projeto, aliás, retoma a série histórica. Será um panorama político do Brasil que vai de 1946, ano em que o general Eurico Gaspar Dutra assumiu o poder, a 1956, quando Juscelino Kubitschek tomou posse.

Como diz Antonio Candido nos primeiros minutos do filme, “nós somos feitos do nosso passado”.

Antonio Candido, Anotações Finais

Quando 26 de setembro

Onde Nos cinemas

Produção Brasil, 2024

Direção Eduardo Escorel

Debate O diretor conversa com o crítico literário Roberto Schwarz e a também cineasta Lina Chamie no Instituto Moreira Salles de São Paulo (av. Paulista, 2424), nesta sexta (27/9), às 18h30

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