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Falhas na investigação da morte de Marielle e Anderson começaram ainda na noite do crime

Falhas na investigação da morte de Marielle e Anderson começaram ainda na noite do crime

O relatório da Polícia Federal sobre o caso Marielle Franco e Anderson Gomes acusa a Delegacia de Homicídios da Capital de sabotagem. Na investigação sobre a morte da vereadora e de seu motorista não foram poucos os erros durante os primeiros cinco anos de apurações. Os problemas na condução da investigação já começaram na noite de 14 de março de 2018, quando houve as execuções. Horas após os assassinatos, o recém-empossado chefe da Polícia Civil do Rio, Rivaldo Barbosa escolhera o delegado Giniton Lages para comandar o inquérito. Os dois foram indiciados pela PF: o primeiro por planejar o crime e o outro por associação criminosa.

Ainda na cena do crime, a polícia não fez uma perícia detalhada no local. Foram deixadas para trás cápsulas no Ágile branco do motorista de Marielle, Anderson Gomes. Testemunhas oculares foram dispensadas e o lugar não foi sequer vasculhado para encontrar projéteis no jardim do próprio hospital da Polícia Civil, que ficava em frente ao local da emboscada, no Estácio. As cápsulas só foram encontradas no carro, que ficou sob sol e chuva na calçada da delegacia, na Barra da Tijuca, dias depois.

Em um artigo publicado hoje no GLOBO, Marinette Silva, mãe de Marielle, criticou os problemas na investigação: “Nos prometeram justiça, mas tramaram contra a vida dela”, escreveu. Uma reportagem do GLOBO deste domingo mostrou que outros inquéritos da Delegacia de Homicídios também sofreram com omissão e destruição de provas ao longo da última década.

DH ignorou testemunhas oculares

As testemunhas que estavam mais próximas do ataque à Marielle foram encontradas pelo GLOBO, uma semana depois e, mesmo assim, Rivaldo não se interessou por elas, apesar de a reportagem tentar ouvir sua opinião sobre o caso. O delegado Giniton Lages, que entrou no caso por indicação do então chefe de Polícia Civil, só se interessou em ouvi-las dois dias depois da publicação da matéria.

Testemunha plantada

Mas a maior evidência de que algo errado ocorria durante a apuração do caso, foi quando, em maio de 2018, portanto, menos de dois meses após o duplo homicídio, uma suposta testemunha surgiu para apontar os supostos executor e mandante. Trazido para a investigação por três delegados da Polícia Federal, o policial militar Rodrigo Jorge Ferreira, o Ferreirinha, contou que viu o miliciano e ex-PM Orlando de Oliveira Araújo, o Orlando da Curicica, e o então vereador Marcello Siciliano, tramando a morte de Marielle num bar-restaurante do Recreio dos Bandeirantes, em 2017.

Ferreirinha trabalhou como cúmplice de Curicica. Imediatamente, os agentes federais, que não tinham atribuição para investigar o caso na época, levaram Ferreirinha diante de Rivaldo.

Em seguida, o chefe de Polícia apresentou a suposta testemunha para depor no Círculo Militar do Exército, na Urca, bairro da Zona Sul do Rio, com o delegado do caso, Giniton e seu chefe de investigação, Marco Antonio de Barros Pinto.

Por quatro meses, a DHC concentrou-se nessa linha de investigação. Até que, com a entrada das promotoras Simone Sibílio e Letícia Emile no caso, outras possibilidades de autores do crime começaram a surgir, como o próprio Ronnie Lessa, que chegou com o codinome de perneta, por fazer uso de uma perna mecânica.

No segundo semestre de 2018, um inquérito foi instaurado pela Polícia Federal para apurar a versão de Ferreirinha. Logo no ano seguinte, o relatório do delegado federal Leandro Almada, responsável pelo caso, conclui que tudo não passou de uma farsa de Ferreirinha, cujos propósitos seriam não ser morto por Curicica, que havia lhe jurado de morte, e tomar a milícia do antigo chefe.

Como o GLOBO mostrou neste domingo, um celular que poderia ser fundamental para esclarecer a origem do carro usado no homicídio sumiu dentro da delegacia. O desaparecimento do aparelho de Eduardo Almeida Nunes de Siqueira, apontado pelo delegado Giniton como suspeito de ser o clonador do Cobalt prata usado no crime, é citado no relatório da Polícia Federal como um exemplo de manipulação das investigações. Embora haja um documento assinado por Giniton, de envio do aparelho para o Instituto Carlos Éboli (ICCE), em 9 de julho de 2018, até hoje o aparelho não apareceu e não há nenhum funcionário do órgão de perícias assinando a guia de recebimento.

Aliás, chama a atenção dos investigadores da PF, o fato de Giniton assinar nos dois campos destinados a quem encaminha o material, quando o documento tem justamente dois espaços para agentes diversos. Em depoimento, Siqueira alegou que foi coagido a conhecer pessoas que não conhecia para incriminar, um deles, Curicica.

Falha ao analisar imagens

Outra falha grave da investigação da DHC, na época em que Giniton esteve a sua frente, ocorreu durante a análise de imagens de câmeras de segurança. Em abril de 2018, ou seja, mês seguinte ao crime, os investigadores já tinham imagens que mostravam que o Cobalt passava pelo Quebra Mar, na Barra da Tijuca — região frequentada por Ronnie Lessa, assassino confesso da vereadora. No entanto, só seis meses depois, Giniton e seus subordinados notaram que as imagens mostravam o carro usado para matar a vereadora. O delegado afirmou, em depoimento à Justiça, que a falha foi causada por “um defeito de codec”.

Segundo a PF, duas câmeras diferentes captaram o momento em que o Cobalt passava pelo Quebra Mar e estavam de posse da DH já em abril. “Se torna inconsistente que em ambos os casos os arquivos de imagem tenham sofrido o mesmo famigerado defeito”, escreveu a PF em seu relatório final. Em outro ponto, os delegados federais afirmam que a explicação de Giniton para a falha é uma “justificativa esfarrapada”. O erro atrasou a identificação de Ronnie Lessa como atirador em alguns meses: segundo Giniton, somente com uma “denúncia anônima”, já no segundo semestre, a DHC chegou ao nome de Lessa.

As suspeitas de obstrução nas investigações, segundo a PF, ocorreram, principalmente, durante do comando do delegado Rivaldo Barbosa como chefe de Polícia. No entanto, após a saída dele, em dezembro de 2018, apesar de o ex-policial militar Ronnie Lessa ter sido preso, três meses depois, como a pessoa que atirou contra Marielle, os empecilhos para chegar aos mandantes prosseguiram. Em março de 2021, surgiria, pelas mãos da própria Polícia Civil, a viúva do ex-capitão do Bope e miliciano, Adriano da Nóbrega, Júlia Emília Mello Lotufo.

A viúva do ex-capitão Adriano, morto em fevereiro de 2020, foi levada pela delegada Ana Paula Costa Marques, então chefe da Coordenadoria de Investigação de Agentes com Foro (Ciaf), cujo gabinete funciona no Ministério Público do Rio (MPRJ), diante do procurador-geral de Justiça, Luciano Mattos, porque gostaria de fazer uma delação e apontar os mandantes do assassinato de Marielle e Anderson. Nessa época, não era Rivaldo na chefia de Polícia Civil. O cargo, inclusive, havia sido extinto e o responsável da pasta passou a ganhar mais poderes, evoluindo para secretário de Polícia Civil. O escolhido pelo governador Cláudio Castro foi Allan Turnowski.

A entrada de Júlia no caso Marielle trouxe obstáculos à investigação, culminando com a saída das promotoras Sibílio e Emile, coordenadora e subcoordenadora da Força Tarefa Marielle e Anderson para se chegar aos mandantes do crime, em junho de 2021. O estopim para que entregassem os cargos foi devido ao risco de “interferências externas comprometerem as investigações”.

Na época, Júlia era ré pelos crimes de lavagem de dinheiro e organização criminosa, o que não mudou até hoje, pois ela continua a responder pelos delitos. Com a delação, ela pretendia ter o perdão por esses delitos e ainda ter a liberação para morar em Portugal. O comprometimento de Júlia com a Polícia Civil chegava ao ponto de a corporação, por ordem de Turnowski e não da Justiça, como ocorre nesses casos, ter dado uma escolta 24 horas para ela, com agentes da Coordenadoria de Recursos Especiais (Core), grupo de elite da instituição.

O GLOBO fez contato também com as defesas dos delegados Rivaldo Barbosa e Giniton Lages, mas, até o fechamento desta reportagem, não houve retorno.

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